Por Joseph Ratzinger,
Glaube und Zukunft, 1970
“A mim parece seguro que à Igreja a aguardam tempos muito difíceis. A sua verdadeira crise apenas começou.”
O futuro da Igreja pode vir e virá também hoje só da força daqueles que têm raízes profundas e vivem da plenitude pura da sua fé. O futuro não virá daqueles que só dão receitas.
Não virá daqueles que só se adaptam ao instante atual. Não virá daqueles que só criticam os demais e se tomam a si mesmos como medida infalível. Tampouco virá daqueles que escolhem só o caminho mais cômodo, daqueles que evitam a paixão da fé e declaram falso e superado, tirania e legalismo, tudo o que é exigente para o ser humano, o que lhe causa dor e o obriga a renunciar a si mesmo.
Digamos de forma positiva: o futuro da Igreja, também nesta ocasião, como sempre, ficará marcado de novo com o selo dos santos. E, portanto, por seres humanos que percebem mais que as frases que são precisamente modernas. Por aqueles que podem ver mais que os outros, porque a sua vida abarca espaços mais amplos. A gratuitidade que liberta as pessoas alcança-se só na paciência das pequenas renúncias cotidianas a si mesmo. […]
Que significa isso para a nossa pergunta? Significa que as grandes palavras daqueles que nos profetizam uma Igreja sem Deus e sem fé são palavras vãs. Não necessitamos de uma Igreja que celebre o culto da ação em «orações» políticas. É completamente supérflua e por isso desaparecerá por si mesma.
Permanecerá a Igreja de Jesus Cristo, a Igreja que crê no Deus que se fez ser humano e que nos promete a vida mais além da morte. Da mesma maneira, o sacerdote que só seja um funcionário social pode ser substituído por psicoterapeutas e outros especialistas. Mas continuará sendo ainda necessário o sacerdote que não é especialista, que não fica à margem quando aconselha no exercício do seu ministério, mas sim que em nome de Deus se põe à disposição dos demais e se entrega a eles nas suas tristezas, suas alegrias, sua esperança e sua angústia.
“O futuro da Igreja, também nesta ocasião, como sempre, ficará marcado de novo com o selo dos santos”
Demos um passo mais. Também nesta ocasião, da crise de hoje surgirá amanhã uma Igreja que terá perdido muito. Se fará pequena, terá de começar tudo desde o princípio. Já não poderá encher muitos dos edifícios construídos numa conjuntura mais favorável. Perderá adeptos e com eles muitos dos seus privilégios na sociedade. Apresentar-se-á, de um modo muito mais intenso que até agora, como a comunidade da livre vontade, a que só se pode aceder por meio de uma decisão.
Como pequena comunidade, reclamará com muita mais força a iniciativa de cada um dos seus membros. Certamente, conhecerá também novas formas ministeriais e ordenará sacerdotes cristãos provados que continuem exercendo a sua profissão: em muitas comunidades menores e em grupos sociais homogêneos a pastoral exercer-se-á normalmente desse modo.
Junto a essas formas continuará sendo indispensável o sacerdote dedicado por inteiro ao exercício do ministério como até agora. Mas nessas mudanças que se podem supor, a Igreja encontrará de novo e com toda a determinação o que é essencial para ela, o que sempre foi o seu centro: a fé no Deus trinitário, em Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, a ajuda do Espírito que durará até o fim. A Igreja reconhecerá de novo na fé e na oração o seu verdadeiro centro e experimentará novamente os sacramentos como celebração e não como um problema de estrutura litúrgica.
Será uma Igreja interiorizada, que não suspira pelo seu mandato político e não flerta com a esquerda nem com a direita. Resultar-lhe-á muito difícil. Com efeito, o processo da cristalização e a clarificação custar-lhe-á também muitas forças preciosas, a fará pobre, a converterá numa Igreja dos pequenos.
O processo resultará ainda mais difícil, porque haverá que eliminar tanto a estreiteza de visões sectárias como a voluntariedade entusiasmada. Pode-se prever que tudo isto requererá tempo. O processo será longo e laborioso, tal como também foi muito longo o caminho que levou dos falsos progressismos, em vésperas da revolução francesa (quando também entre os bispos estava na moda ridiculizar os dogmas e talvez inclusive dar a entender que nem sequer a existência de Deus era de modo algum segura) até à renovação do século XIX.
Mas depois da prova destas divisões surgirá, de uma Igreja interiorizada e simplificada, uma grande força. Porque os seres humanos serão indescritivelmente solitários num mundo plenamente planificado. Experimentarão, quando Deus tiver desaparecido totalmente para eles, a sua absoluta e horrível pobreza. E então descobrirão a pequena comunidade dos crentes como algo totalmente novo. Como uma esperança importante para eles, como uma resposta que sempre procuraram às apalpadelas.
A mim parece seguro que à Igreja a aguardam tempos muito difíceis. A sua verdadeira crise apenas começou todavia. Há que contar com fortes sacudidas. Mas eu estou também totalmente seguro do que permanecerá no final: não a Igreja do culto político, que fracassou já em Gobel, mas sim a Igreja da fé. Certamente, já não será nunca mais a força dominante na sociedade na medida em que o era até há pouco tempo. Mas florescerá de novo e se fará visível aos seres humanos como a pátria que lhes dá vida e esperança para além da morte.
*Este texto foi extraído de cinco homilias radiofônicas, proferidas, em 1969, pelo professor de teologia Joseph Ratzinger. Essas mensagens foram publicadas em livro sob o título de “Fé e Futuro”.
fonte rádio Vaticano.